
Eu comecei 2020 praticamente nas nuvens: em uma ilha flutuante no Titicaca, em plena Cordilheira dos Andes. E foi completamente por acaso que escolhi como grande desafio a altitude e a consequente falta de ar… eu juro que não tinha bola de cristal! E os primeiros meses do ano foram agitados: mal fechou o segundo mês e o aplicativo já tinha me avisado que neste ritmo eu completaria uma volta ao mundo ainda em 2020. Mas de repente, o contador parou. E eu me vi diante da maior e mais inimaginada aventura da minha vida: atravessar um ano imenso de grandes incertezas. Sem planejamento, sem qualquer treinamento. Quase uma insanidade. Festejei os 100 dias de isolamento e a travessia continuava, sem qualquer sinal de que iria se concluir em breve…
Felizmente, minha alma de atleta falou mais alto e o milagre da superação foi acontecendo dia-a-dia. Decidi que, independente da colocação, o importante era não desistir totalmente e de alguma forma tomar o rumo da linha de chegada. Fui me permitindo fraquejar no caminho e perdoei minhas paradas (des)necessárias para tomar fôlego. Como não existe vitória sem dor – mesmo que na chegada ela pareça mero detalhe diante da euforia de conseguir – aceitei que ela fazia parte do jogo e a vivi com intensidade. Perdi a conta de quantos dias paralisei, de quantos dias chorei rios por achar que não ia dar conta… Como toda a prova de endurance, alternei momentos de euforia (um desafio superado!) e desespero (existem ainda muitos desafios mais!).
Por muitas vezes estive a um fio de bater aquelas fatídicas 3 vezes na lona para pedir clemência. Mas, ao invés de desistir, felizmente eu decidi buscar novas táticas, me transformar, me reinventar… Em alguns momentos tenho a impressão de estive imóvel. Contudo, se ouso olhar para trás, percebo com um sorriso a enormidade da distância percorrida e das transformações que fiz para seguir viva nesta grande travessia. Sim, lentamente, passo a passo, fui me transformando: perdendo pesos e preconceitos, perdendo medos e orgulhos bobos, perdendo mágoas… ganhando confiança, construindo novos passos, buscando novas táticas para vencer – ou ao menos conviver! – com o novo inimigo invisível. Aceitando. Entregando. Confiando. Agradecendo. (Ações sabiamente sugeridas pelo Mestre Hermógenes!)
O doido desta grande travessia na qual me meti é que ao contrário das tantas provas esportivas que já participei, não tenho nem ideia de onde está a linha de chegada, só sei que o prêmio é o maior de todos: ser um novo Ser! E tudo o que eu quero é ser este ser e fazer por merecer…
Completei o ano, masmas a grande travessia segue. Completei apenas uma volta e apesar de um certo alívio e otimismo, sei que ainda tem muito mais, ainda que eu não possa precisar quanto. Agora minha vantagem é entender que a vitória não é uma questão de velocidade, mas sim de persistir e manter-se em movimento. Nesta jornada perdi amigos, perdi parentes, perdi minha companheira canina de uma vida e perdi até uma de minhas bicicletas – a Fênix (que tenho certeza que algum dia renascerá mais uma vez!)… tudo isto dói demais. Mas junto com a dor também ganhei a força de verdadeiras amizades e afetos sinceros que apoiam, acariciam, inspiram. Das madrugadas de muito trabalho e jornadas suadas no cultivo da horta também reforcei a crença de que da noite sempre surge um novo dia e que da lágrima sempre brota alguma semente. Com as vidas que se foram, se fortaleceu meu compromisso de seguir e viver meu propósito.
Se o esporte imita/inspira a vida (ou vice-versa), percebi que os pontos de apoio desta grande travessia são as lindas recordações dos lugares que visitei, das pessoas que conheci, de tudo que provei e compartilhei com todos meus sentidos. E é justamente das boas lembranças que tenho de minhas empreitadas pedalando por aí que vem o estímulo – e a convicção – de que os maiores esforços são brindados com as melhores vistas! Esta travessia vai valer a pena, com certeza! E também é certo – como disse uma querida cicloamiga expert em travessias – que na bicicleta não tem marcha à ré e por isso seguir em frente é a única alternativa. Eu sigo. Eu sigo nesta grande travessia e me sinto um misto de Dom Quixote e Pequeno Príncipe: por um lado lutando com moinhos de vento, devota a um grande amor imaginário; e por outro lado empreendendo uma mágica viagem (de volta ao meu asteroide?) e sentindo no coração a constatação deste pequenino menino loiro de manta vermelha: “aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós: deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”. Assim, parece que a preparação que eu julgava não ter para esta grande travessia, sempre esteve lá, nas minhas raízes… A cada passo que avanço e me transformo sinto que marcham comigo meus ancestrais, me alinhando para chegar e mostrando que não há outra alternativa senão avançar, desenvolver e acreditar nas pequenas fortalezas que vinham a uma vida escondidas, latentes…
Enfim – e nem perto do fim! -me sinto incrivelmente grata por participar desta grande travessia na modalidade “reality” e esperançosa de que em algum momento, sem que eu mesma perceba, vou cruzar a linha de chegada!
Maravilhoso, admirável Carol! Vamos em frente, seguindo na travessia.
LikeLike
Muito obrigada Irene! Vamos sim, sempre em frente! E muito obrigada por também me apoiar e incentivar nesta travessia! 😊
LikeLike