
Aquela subida enlouquecida rumo a Wilderness, o “w” insano de superar dois vales em um mesmo dia de pedal para alcançar Tsitsikama…. e até mesmo o pedal que eu considerava o mais díficil da minha vida – de El Alto a San Pedro de Tiquina a 4000 metros de altitude ficaram para tras. O desafio maior foi hoje.
Durante uns 10 dias ensaiei o percurso. Duas noites seguidas sonhei que tinha que tentar. Pensei em colocar cartazes em mim dizendo: estou indo comprar comida. Mas desisti porque seria um item a mais para desinfetar…Acordei sem pressa e revisei várias vezes minha lista. Tirei anéis, brincos, pulseiras. Deixei apenas a aliança dos meus avós que me acompanha desde meus 15 anos. Precisava ser forte como minhas raízes. Deixei todo o material de higienização bem ao alcance da mão, próximo ao portão. Fiz uma oração, boeleei a perna, montei na bike e subi vagarosamente a lomba da minha rua. Assim que cheguei no platô percebi que meu coração estava disparando. Não, não era a subida, era a emoção – e nela incluída o medo, pois cruzei com outros humanos desavisados (?) nas primeiras 3 quadras.
Continuei o pedal e quando peguei a primeira avenida – completamente deserta as 10 da manhã de um lindo sábado de sol – eu chorei. O silêncio, não era paz, era medo! Segui no meu envergonhado pedal e cruzei com um grupo de garis. Os reverenciei. Sempre os cumprimento, mas na saudação desta manhã queria mais, queria dizer que para mim eles também são heróis, pois não deixam a moral da cidade cair.
Comecei a ver gente na rua, que parecia ter caído de outro planeta: casais empunhando um chimarrão e simplesmente passeando, como se a vida seguisse seu curso. E segue. Mas não sem rever uma centenas de conceitos e pré-conceitos…
Segui em pedaladas hesitantes, como se fosse minha primeira vez… E era, a primeira vez depois de 20 dias acuada em casa. É tolo demais, mas eu tinha vergonha…queria explicar ao mundo que não estava me divertindo ou me exercitando e tripudiando de todos aqueles que respeitam a orientação de isolamento. Nem fazendo pouco caso daqueles que diariamente se arriscam por nós. Eu só estava indo comprar comida. E é só. Escolhi o Mercado Central de Porto Alegre pois lá encontraria tudo o que eu preciso pelo preço que posso pagar com apenas uma viagem. E por falar em viagem, segui a minha.
Quando comecei a ver mais humanos, subi a máscara e por cima da máscara a bandana de ciclista. Até que enfim alcancei o poste da salvação: prendi a bike e retirei os alforges para encher no mercado. Deu medo. Mas eu fiz tudo dentro do script, como tinha ensaiado tantas vezes….só faltou um mapa, de tão organizada mentalmente que estava minha logística. Entreguei minha lista e esperei pacientemente a 1,5 metros de distância.
Mais uma parada, uma saudação de longe e voltei para o meu poste. Saquei o alcool gel da pochete e besuntei os guidãos da minha fiel escudeira para que ela pudesse me guiar em segurança de volta para casa. Fomos. Eu, não querendo cantar vitória antes da hora, ela, meio tremelicando de tanto peso, por baixo, calculo uns 30 kg! Mais ou menos no meio do caminho de volta para casa, veio a tentação: rever a orla do Guaíba. E eu já estava quase cometendo este deslize quando recobrei a razão e repeti com força para mim mesma: “eu fui apenas comprar comida”. E nisso segui pelo caminho mais curto e de menos fluxo. Nada de passear Não agora.
Quase em casa e eu estava empurrando pela calçada lomba acima minha bike carregada de mantimentos para o mês quando um rapaz vestido de ciclista. Ele me ultrapassou pedalando e olhou para trás. Quando cheguei no topo, pressenti que ele queria conversa e mudei de lado na rua. E qual não foi a minha surpresa quando ele bradou para mim: “teve medo da subida, é?”. Atônita eu subi rapidamente na bike e soquei o pedal para ganhar distância daquele idiota. Mas não sem antes levantar o dedo anular sem o menos pudor e com total convicção. A vontade que eu tinha, era de voltar lá e passar um sermão sobre humanidade, solidariedade e outras “cositas mas”. Mas ele certamente não ia entender. Só mais 4 quadras e eu cheguei em casa e mais uma vez executei todo o plano de ação estritamente como o planejado. A bike, o capacete e os alforges tomaram banho de água com sabão, que também estava em um balde que aguardava minha máscara, sapatos, chaves e roupa. Como vim ao mundo, entrei em casa e fui direto para o chuveiro. Devem ter sido uns míseros 15 ou 16 quilometros de pedal e parecia que eu tinha escalado o Everest. Me vesti e me arrumei. Deu até vontade de colocar um salto alto para ir buscar no portão os alforges e a bike. E também tirar uma foto, afinal, foi o primeiro pedal da Fênix Venturosa. Sim, a bike que em tantas aventuras e desafios me acompanhou e que fraturou o quadro na véspera de uma grande cicloviagem para me salvar, a Branca de Neve, ganhou um novo quadro e agora se chama Fênix. Fênix Venturosa, como a precursora. Venturosa, sobrenome da minha família de bikes. Fênix porque a batalha não está ganha e com certeza muitos desafios ainda virão pela frente nestes tempos de pandemia. O primeiro, vencemos juntas.