Os olhos do São Chico – 2

Na primeira vez que estava para encontrar o majestoso Rio São Francisco meus olhos adoeceram. E foram curando ao longo do caminho, enchendo-se diariamente de uma beleza – espero! – tão infinita quanto suas águas que distribuem vida e esperança ao sertão. Da segunda vez que fui encontrá-lo, talvez por eu não ter entendido a complexidade da primeira lição, ele foi bem mais explícito…
Meu destino, desta vez foi a Serra da Canastra, MG, onde estão escondidos os tesouros…e, não por acaso, o que há de mais precioso do que a vida que brota do chão na forma de água? E, por falar em perguntas, o que importa são as perguntas ou as respostas? O que pedir a Deus? O desafio é esquecer ou resignificar? Várias questões vieram na minha mente desde o início da viagem. Aliás, desde o Seu Roque, pescador que conheci nas margens do São Francisco, em Penedo, Alagoas, e que afirmou sem hesitar que “o São Chico é mãe”… Foram muitos quilômetros, lições e indagações até São Roque de Minas, onde conheci o útero do grandioso Rio do Sertão. Ano passado, na negativa de uma outra viagem surgiu a oportunidade e o chamado para conhecer sua foz…..pedalar de lá até os cânions do Rio São Francisco. Este ano, mais a vez, foi na dolorosa gestação e parto de uma decisão difícil que o Rio me chamou novamente. Mandou um anjo travestido de raio de sol – o primeiro da manhã – para me guiar: uma amiga luz que conheci no deserto de águas chamado Jalapão, um lugar que tanto mudou a minha vida.
Todas as voltas para uma vez mais entender que a Lei do Senhor é perfeita e tudo tem o tempo certo…. até mesmo as divinas linhas tortas que as vezes me pegam desprevenida e dão aquela rasteira… Mas, afinal de contas… com o tempo acabo reconhecendo que a “rasteira” é apenas o movimento necessário para mudar o ângulo e voltar a ver a vida diferente. A grade da casa prende o ladrão ou o morador? O ponto de vista é tudo. E eu que comecei pelo “fim”, agora rumava para o início… (sim, sou transparente, mas nunca fui óbvia!)
No meio da madrugada, saímos de Contagem rumo a São Roque de Minas, com as bicicletas no carro. Centenas de quilômetros depois, chegamos mais perto do nosso destino, armamos acampamento, fomos acolhidas com um sotaque e café gostoso, acompanhado de um “queijin(ho)”. Soltamos as bicicletas que até então estavam só curtindo de camarote o cenário na paz do transbike  e começou o pedal dos sonhos…a dura e linda “escalada em busca do tesouro” escondido na majestosa Serra da Canastra.

Eu parava nas curvas para tomar fôlego e admirar a subida. Ao mesmo tempo que queria chegar, também queria prolongar ao máximo e sentir cada momento até a chegada na nascente. Mesmo me sentindo parte universal da natureza, tenho para mim que é preciso sempre pedir licença antes de explorar um novo território, me colocar inteira para receber de corpo e alma a energia do lugar. Foi divino ver a natureza se transformando, em uma vivência do cerrado completamente nova para mim. Pedalei por partes que em muito lembravam meus pampas e, como forma – folha! – de conexão, encontrei pelo caminho perfumadas macelas…me divirto também assim: buscando o que há de comum na vida que nos cerca!
E assim, como uma criança que dá os primeiros passos explorando um mundo novo, cheguei pedalando ao meu destino: a nascente do Rio São Francisco. Um lugar calmo, com água cristalina e peixes dourados. Tempo macio e eterno. Plano até onde o olhar alcança. O que senti, foi uma paz absoluta. Bebi sua água, me senti abençoada… E, lá pelas tantas, estava eu neste transe quando escutei um senhor falando que muitas pessoas que vão conhecer a nascente buscam algo mágico, extraordinário, e ao se deparar aquele cenário se frustram. Não foi o meu caso, para mim o simples, é extraordinariamente mágico. O pequeno – Minas me ensinou muito isso – é extremamente forte… gigantesco!  Um pequeno poço de água, cheio de peixes dourados, que nasce em meio ao cerrado e opta em fazer o caminho mais difícil, que decide – pela própria natureza – ir contra a “correnteza” para mim é pura magia. É inspiração. É força para seguir brigando para não ser maioria, para ser resistência e acreditar na vida. Vida que o São Chico promove ao longo do seu curso com generosidade…

Observando aquela fonte de vida, me passou que alguém que não conhece toda sua abundância antes de se entregar ao mar, não deve acreditar o poder daquele filete de água, repleto de vida e vocação. Assim, como quem me vê serena não imagina todas as batalhas e todas adversidades para manter o curso dos sorrisos…
Pegamos as bicicletas e fomos adiante… pedalamos duro para reencontrar o Rio São Francisco mais adiante, em nova e majestosa forma: vida em movimento, energia pura – a parte alta  da Cachoeira Casca Danta, a segunda mais alta de Minas Gerais. De novo, como gosto, me conectei com todos os sentidos à magnitude do lugar, pés na água gelada e cristalina, peixes me beliscando para que eu tivesse certeza de que não era apenas um sonho. A natureza, sempre parceira, sorrindo e me dando sua energia em nosso (re) encontro.
Mas o presente – lição – maior veio dois dias depois, quando caminhamos até a parte baixa da Casca Danta e nos deparamos com a força incrível do São Chico travestido de Cachoeira, caindo lá de cima, por um imenso paredão, fazendo redemoinhos ao tocar a superfície da água. Tanto ar – puro! – que parecia explodir os pulmões e extravasar por todos poros. Sua água molhava de longe, e entre pedras e umidade vi flores e muita vida. Mais uma vez, contrariando a maioria. E vi os olhos que não vem, enxergando com o coração toda a beleza do lugar. Sim. Recebi um presente divino: um senhor cego estava lá “vendo” o lugar com a ajuda de sua filha que tentava descrever o indescritível. Inevitável não pensar a responsabilidade daquela filha, em apresentar ao pai toda aquela beleza. Inevitável não pensar em nossa responsabilidade de traduzir o mundo. Inevitável não pensar quanta gente que fica em casa, vendo pela TV, ou que está ali e não enxerga. Ou gente que reclama do caminho acidentado ou da ausência de sinal de internet. Pois eu fechei meus olhos e vi além: vi o que o Velho Chico talvez quisesse me dizer desde o primeiro encontro: é preciso ver a beleza com o coração, é preciso amar a vida com toda a intensidade da água que se quebra e mesmo assim, segue pura, exuberante, segue vida em gratidão. É preciso sentir, sem provas. Sem certo ou errado. Com fé. Lembrei do desafio da minha vida – aprender o amor próprio – que nenhum espelho ou passe de mágica vai me ensinar. Talvez fechar os olhos seja o melhor caminho para eu enxergar. Fechar os olhos e ver claramente na minha frente, tão claramente a ponto de sentir e tornar real o que alguns enxergam e eu não tenho coragem de ver… Um dia eu aprendo, Velho Chico! Tua oração será meu mantra, até que eu tenha coragem de aprender. De aprender e aceitar.