
South African Diaries 4
Seria o meu primeiro dia “livre” em Cape Town. A bicicleta estava na Oficina, e não havia nada que eu pudesse fazer para mudar este status. Decidi então caminhar sem rumo definido pelas ruas e sentir a cidade. Sentir se todas as advertências que me faziam desde que eu cheguei, faziam sentido. Afinal de contas, no Brasil me fazem as mesmas advertências – e outras tantas! –e eu sigo sempre em frente, rebelde, contrariando as estatísticas.
Na verdade, eu tinha apenas uma “missão oficial” para o dia: ir em uma Delegacia e fazer a cópia autenticada do meu passaporte, para não ficar perambulando pelas ruas com o original. Aqui cabe um parênteses: esta certificação é feita gratuitamente na África do Sul. Gol de placa para eles, enquanto nós aqui no Brasil continuamos pagando por papel!
Saindo do meu hostel, com uma curta caminhada já encontrei diversão no Green Market – uma feira de artesanato cheia de história e muita cor localizada bem no centro de Cape Town. Eu passeei calmamente, observando cada detalhe e imaginando qual ou quais as fontes de inspiração dos artesãos eu encontraria no meu caminho quando começasse a minha cicloviagem … Sim! Viajar de bicicleta oferece esta liberdade: queremos sentir, e não carregar… queremos fotografar, guardar na retina e não em alguma prateleira, para empoeirar.
Neste dia, ainda que respeitando o ditado “Quando em Roma, faça como os Romanos”, não fiz a menor questão de esconder que eu era brasileira e coloquei uma regata verde e amarela com o nome do meu país. Porém, meu tiro saiu pela culatra: o rugby é uma das paixões nacionais sul africanas e o verde-amarelo representa os Springboks – principal equipe. Mesmo assim, eu estava longe de me passar por uma local.
Nas voltas pela feira de artesanato, entre ovos de avestruz, peles de zebra e uma explosão de cores, me chamou a atenção uma igreja de arquitetura clássica com muitas bicicletas na frente. A porta estava aberta, e resolvi entrar… Fiquei uns minutos em silêncio, fiz uma oração, dei uma volta e reparei os bancos com almofadas com tecidos bem africanos e combinações inusitadas ( se estou na África, isto parece óbvio, mas não é!). No fundo do templo, cartazes convidavam para participar de projetos para incentivar o ciclismo. Muita coincidência. E, de repente, um senhor bem simples se aproximou de mim de forma gentil e me fez algumas perguntas. Eu contei que era do Brasil e tinha vindo – entre outros motivos – para participar de uma prova ciclística e as bicicletas na porta tinham provocado minha curiosidade. Então ele me contou que o pastor desta Igreja era ciclista e que iria participar da prova também. Ele me convidou para participar de um culto que seria realizado excepcionalmente naquele dia, à noite. Eu agradeci o convite, que incluía a apresentação ao meu colega de competição, e prometi voltar no final do dia.
Segui minha caminhada exploratória e logo me encantei com a quadra de flores, cheia de Protéias, uma flor típica e eleita um dos símbolos nacionais sul africanos, junto com o Blue Crain (pássaro) e o Springbok (uma espécie de cervo). Outra curiosidade, é que a África do Sul têm 3 capitais: Cape Town ( Poder Legislativo) , Pretória ( Poder Executivo) e Bloemfontein (Poder Judiciário). E estava eu justo caminhando próximo ao Parlamento e me deliciando com a proximidade das montanhas quando cruzei com um grupo de colegiais com engomadas camisas e blazers como uniforme. Me encantei com o grupo e as segui disfarçadamente acelerando o passo para “roubar” uma selfie. A esta altura, eu já tinha conseguido executar a tarefa do dia – autenticar a cópia do passaporte – e estava toda sorrindo por dentro com as minhas evoluções em solo africano. Foi em frente a outro colégio que passei sorrindo de orelha a orelha e com os cabelos completamente livres e escabelados que cruzei com duas meninas negras de longas tranças que me cochicharam: You are pretty! (você é linda!). Eu sorri mais ainda: outra vitória – desde que eu comecei o dia estava caminhando de peito aberto e olhando olhos nos olhos, disposta a ver com o coração. Quando as meninas me elogiaram, considerei que tinha atingido meu objetivo, mesmo sem palavras, estava estabelecendo comunicação, tinha passado algo de bom para elas. Eu devia ter voltado e dito para elas o quanto elas eram lindas também. Acho que este foi o único arrependimento da minha viagem.
Em passos cada vez mais leves , quase que planando entrei em um boulevard e experimentei um snack muito típico: Biltong. São pequenos pedaços de carne desidratada e temperada tanto de animais convencionais – como gado – até os mais exóticos como avestruz, kudu e o próprio Springbok, que mesmo sendo o símbolo nacional não escapa do prato! Adquiri alguns para os próximos dias e segui. Cheguei no Company’s Garden – um jardim privado aberto ao público com a mais incrível variedade de plantas que já vi, uma espécie de sampler botânico mundial. Foi lá, que depois de uma “conversa” quebra gelo com simpáticos esquilos tive o meu primeiro “amigo” sul africano que não era Uber Drive.
Sempre fui apaixonada por plantas e não resisti a imagem daquele senhor franzino regando os jardins. Ele se chamava Collins e era voluntário no Company’s Garden. Me contou que a diversidade de espécies do jardim remontava à época da chegada dos primeiros imigrantes holandeses, por volta de 1650, época na qual a área era utilizada para a produção de alimentos frescos para as tripulações. Cape Town era destino, mas também porto de passagem e cada vez que um navio passava por ali, deixava novas espécies de plantas, dos 4 cantos do mundo. Ele me deu dicas de jardinagem, de ciclismo e de vida. Me convidou a voltar no dia seguinte, no mesmo horário, para continuarmos nossa conversa.
Segui. Era hora de voltar para o Hostel e ousar o último compromisso do dia: percorrer 3 quadras até a Igreja, já sem a luz do sol. Digo ousar porque desde o primeiro dia o conselho de apenas andar sozinha sob a luz do astro rei foi unânime. Mas eu fui. Com as mãos abanando e os olhos bem atentos. Quando cheguei lá, uma grata surpresa que até então eu não tinha me dado conta: era quarta-feira de cinzas e o culto era alusivo a isto. Ou seja, eu passaria toda a Quaresma – e mais um pouco! – aprendendo na Mama África. Uma voz angelical ao piano, outra jovem tocando violão e a comunidade bem acolhedora. Me senti abraçada. O pastor ciclista fez uma prédica linda sobre nossa condição humana nos motivando à ação. No final do culto, me deu dicas sobre a prova, detalhes valiosos sobre a largada e acalmou meu coração. Saí do templo sorridente e antes de me “recolher” ainda passei em um mercadinho ao lado do Hostel para comprar água . Quando fui pagar, o atendente me perguntou se eu era cristã. Surpresa com o inusitado da pergunta, respondi que sim e ele completou: “imaginei, pois você está com uma cruz na testa”.
Então me dei conta que tinha participado de uma dinâmica na Igreja, uma bênção com cinzas, e não tinha me limpado. Mesmo assim, me senti orgulhosa de compartilhar minha fé.
A pergunta do atendente, descendente de indianos, fechou com chave de ouro do meu dia. Mais uma vez percebi o quão longe da minha casa estava e do quão importante é saber quem somos para podermos respeitar o diferente e as diferenças.
Confira o meu percurso e algumas fotos em:
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