
No Norte do Brasil costumam dizer que “o prego que se destaca, é o que leva a martelada”. Mesmo sem saber deste ditado nem compreender toda a sua complexidade e dimensão, desde pequena vivi esta realidade: eu era o patinho feio, eu era a diferente… e sempre acreditei que as marteladas eram para firmar. Não era dor, era um ato inerente ao “ser prego”. As marteladas me deixavam mais forte, me faziam “criar raízes”, ter convicção das minhas ideias. E, para ser sincera, eu nunca tive a percepção de que me destacava… nos meus “sonhos cor de rosa” e pretensão de filósofa, eu “só” quis sempre viver o que eu acredito…um vez escrevi até um poeminha de cozinha, no qual confessava que adoraria ser uma beterraba e colorir a todos com sua cor intensa e cheia de doçura… Ou seja: nunca tive a pretensão de me destacar, nunca fiz nada para aparecer, mas sim para obedecer ao meu coração. Como poderia imaginar que justamente isso me tornaria tão diferente? Como o que para mim é tão natural poderia justamente me colocar em evidência? Já no Colégio, minhas amigas carinhosamente me apelidaram de ET – diziam que eu era diferente. Nunca achei isto um demérito.
Sem noção da minha estatura bem acima da média, muitas vezes as crianças olham para mim com espanto e fascinação, como se admirassem um lendário gigante. Contudo, olhando “aqui de cima” tudo parece tão normal, afinal me acho tão fraca e minúscula diante da grandeza do Universo. Marteladas a vista!!!
Sempre tive sonhos. Muitos sonhos! E fui fiel a eles. Sempre busquei a coerência entre eles e minhas ações. Neste constante movimento e busca, muito remei contra a maré. Muita martelada levei. Mas, como já disse, tudo bem! Nada mais justo para viver “cor de rosa”. Nada mais justo para eu ser o que acredito e me sentir inteira.
Há cerca de um ano e meio atrás, passeando de carro pela noite paulistana no caminho entre a melhor bomba de chocolate de São Paulo e o inesquecível chopp black olhei com deslumbramento as obras na Avenida Paulista para a construção de ciclovias. Recordo de ter pensado que por mais que sonhasse de fato não acreditava que viveria para ver o “espaço sagrado” de uma das principais ruas do maior centro econômico brasileiro dar espaço as minhas amadas bicicletas em detrimento dos truculentos motores. Na ocasião lembro de uma leve e fresca brisa que parecia prolongar o momento ao máximo, como que me oferecendo tempo para assimilar aquela mágica e revolucionária realidade. Inevitável não pensar: “quem diria?”.
Ver ciclovias em São Paulo e as bicicletas se consagrando no dia a dia e ganhando cada vez mais espaço foi um marco em minha vida. Um indício para seguir sendo um ET. Na verdade, seguir sendo eu, diferente simplesmente por ser precursora. Um sinal para ter paciência pois os sonhos mais loucos podem ser realidade.
Nesta convicção, dei muitas chances para o nosso país. Segui acreditando. A cada novo capítulo dos repulsivos e doentios casos de corrupção revelados quase que diariamente, tentei me manter confiante. Confesso que fiquei até mais feliz em ser ET, porque nunca teria coragem de fazer as atrocidades que os políticos fazem com a maior naturalidade. Hoje o meu mundo caiu. Ou caí eu. Caí na realidade. Estava trabalhando no meu escritório quando olhei pela janela e me distrai com dois meninos que poderiam estar voltando da escola, não tinham nem quinze anos. Parecia que iam bater na campainha do vizinho da frente, no outro lado da rua…. eu fiquei observando a cena. No final entendi que eles buscavam apenas o cenário para uma foto, para uma selfie: queriam uma sombra e um enquadramento legal no sol do meio-dia… Mas, qual não foi a minha surpresa quando os livros foram para o chão para que a mão pudesse ficar livre para fazer o sinal de positivo em sintonia com o sorriso. O problema não foi o nem o sorriso nem o positivo, foi o que ocupava a outra mão: uma arma. Uma arma? Tive que olhar, pois não acreditei. Sim. Era uma arma, parecia aquelas de filme. Mas, não era de brinquedo. Eu olhei com atenção. E olhei mesmo, porque não queria enxergar, porque estava difícil de engolir. Um menino magrela, sem corpo nem para preencher a camisa de jogador de futebol, fazendo pose em plena luz do dia e se achando “o cara” porque estava armado. Depois do click, colocou a arma na frente, por dentro da bermuda e a camisa cobriu. Pegou os livros, desceu a rua e voltou a ser criança… Se eu cruzasse com ele na rua, se me dissessem que ele estava armado, eu jamais acreditaria. A não ser que fosse como figura de linguagem, como metáfora. Mas eu vi. E morri um pouco. Pensei em todas as outras coisas que já me disseram e eu sempre achei que era pegadinha. Lembrei quando eu trabalhava com projetos sociais nas favelas e me perguntavam se eu não tinha medo dos fuzis e eu achava que estavam de gozação comigo. Lembrei de todos alertas e todos potenciais perigos de minhas aventuras. Lembrei das notícias da TV, cada vez mais assustadoras e mais próximas. Tiraram a cor do meu mundo cor de rosa. Acabaram com o sonho da beterraba. Roubaram o horizonte dos meus sonhos. Aniquilaram a poesia das minhas reticências. Me trouxeram para a Terra, adeus ET. Não há mais múltipla escolha. Só consigo pensar em duas opções: persistir ou desertar. E, diante dos fatos a segunda alternativa agora parece a mais coerente. E, quanto ao ditado nortista, agora ele parece mostrar a que veio, e me deu medo: quero me tornar invisível, quero “só” ser mais um…agora a martelada está doendo…