
Eu tinha planejado ficar apenas 2 noites em Simonstown. Mas as dificuldades do caminho até lá me deixaram apreensiva: foi um dia inteiro para vencer pouco mais de 20 km. O carinho pelo qual fui recebida pelos meus hospedeiros também fortaleceu em mim a vontade de ficar um pouco mais na zona de conforto. Deixei para pensar durante o dia. E o dia começou cedo porque o desafio era gigante: alcançar o tão temido Cabo das Tormentas, um tempo depois rebatizado de Cabo da Boa Esperança.
Eu acordei até antes do sol e espiei ele brotando vermelho e intenso pela janela do banheiro do segundo andar enquanto eu tomava banho. Era um dia histórico. Um dia em que a minha história ia se cruzar com a história da humanidade: meu objetivo era chegar pedalando ao Cabo da Boa Esperança, outrora conhecido como a “divisória dos oceanos”. O para mim mítico local que levou ao naufrágio tantas navegações que buscavam o caminho das Índias. Para dar aquela pitada épica ao meu desafio o vento estava avassalador. Meus amigos caninos, Donna, Gino, Zita e Jasper nem sairam para caminhar. Mas eu fui. Quando desci o morro – pedalando porque a gravidade não foi capaz de vencer o vento- tive a certeza que o desafio seria grande.. Cheguei na costa e o horizonte era tão avassaladoramente lindo quanto forte o vento contra. Pedalando ou caminhando, eu calculei que faria o mesmo tempo, mas preferi pedalar. O caminho não era novo para mim, eu tinha feito parte dele durante a prova de ciclismo que coroou minha chegada na África do Sul. Mas naquele dia eu tinha alguma pressa, e hoje, nenhuma. Desfrutei então o vento contra e o cenário cinematrográfico no ritmo possível.
Quando eu cheguei exatamente na placa da entrada do Parque Nacional do Cabo da Boa Esperança o meu pneu furou. Sentei calmamente diante da placa e aproveitei o aparente conforto de poder fazer a troca em um local seguro com visibilidade e grande fluxo de veículos, que, psicologicamente, me protegiam também do ataque de algum animal selvagem. Calmamente realizada a substituição eu segui e quando avistei as guaritas do Parque, vi que havia fila – era justo o horário de abertura. Nem tentei tirar vantagem e tranquilamente me somei a fila de carros para pagar o ingresso. E eu estava ali, naquela paz, de pé, com a bike entre as pernas e degustando alguns biltongs ( espécie de snacks de carne desidratada, muito comuns na África do Sul) quando me senti observada. Vi que todos os carros ao meu redor fecharam os vidros e os motoristas passaram a me observar. Não era para menos: vinha um arrastão. Com caras de poucos amigos e toda a displicência do mundo, eles vinham certeiros na minha direção. Eram babuínos. Para minha decepção, eles passaram direto, me deram as costas e se sentaram no meio fio, encarando as montanhas e o vento contra. Nunca vou esquecer esta cena : o vento alisava seus pelos e conferia-lhes um ar de filosofia. Para mim, eles estavam rezando…rezando e reverenciando a mãe natureza. Me senti irmanda e plena. A fila avançou. Eu entrei no Parque. Parecia um cenário lunar: horizontes sem fim e completamente desertos. Paisagens de tirar o fôlego. Muitas vezes achei que estava chegando, e era só alarme falso Mesmo assim, o coração batia descompassado e eu repetia para mim mesma: “Carolzinha! Você está chegando ao Cabo da Boa Esperança, ponto tão almejado pelos grandes navegadores! O vento que te mata não podia ser um vínculo mais lindo com a história da tua história!!!”. Sim, o vento estava insano e a ansiedade era ainda mais insana. Mas, ao mesmo tempo, eu não resistia a parar e registrar o caminho e os recantos que tão estratégica e poeticamente o sul africano arma para contemplar sua divina natureza.
Depois de vários alarmes falsos, enfim peguei a direita rumo ao Cabo. E quando eu vi o Oceano e parei para um registro, de relance me senti observada. Na África do Sul esta sensação nunca foi apenas impressão e desta vez não foi exceção à regra: uma manada de antílopes me observava. Gratidão. Segui. Quando já estava pedalando ao lado da praia, outra cena insólita e abençoada: dois avestruzes entre mim e as ondas do mar. Fotografei e rindo com todos pulmões apostei uma corrida- fadada a derrota – com eles. Perdi, é óbvio,com a desculpa de que o vento continuava avassaladoramente contra, mas ganhei aquele momento único. A Strussmann é os avestruzes…meu sobrenome tantas vezes foi confundido com o nome deles. Qualquer semelhança, é mera coincidência…e, cada vez mais eu admiro estes animais encantadores!
Cheguei no ponto geográfico que identifica o Cabo da Boa Esperança e fiz uma foto para ficar nos anais – com a Bike, é claro – mas não pude seguir pela trilha até o Farol pois seria muito íngreme e difícil para a minha companheira. Empatia é tudo! E eu seguia com uma norma bem clara e inflexível na minha mente: nunca pedalar após o pôr-do-sol. Voltei então pela estrada e fiz um longo caminho até o Farol. No meio deste caminho veio uma vontade incontrolável de fazer o número um. Não tive escapatória: em uma moita avantajada fiz um “epic pis”. Por um momento, pensei até ser zombaria da minha parte a todos os que naufragaram tentando transpor este Cabo. Depois relaxei e contribui com um pouco de água para este local mágico.
Já próxima do Farol e do complexo turístico, mais babuínos e eu torcendo para que eles me notassem, mas nada! Eles sabiam o seu rumo e permaneciam indiferentes…de qualquer forma, eu segui encantada com a sua presença: pedalar em meio a eles é uma sensação indescritível…
Sempre atenta ao relógio, resolvi economizar tempo e tomei o funicular para subir até o Farol e confesso que além de poupar uns minutos e minhas pernas, evitei o medo que certamente me travaria no caminho: o vento era tanto que quando subi as escadas finais até a base do Farol, me agachei pois tinha a sensação que o vento ia me levar para além mares…minha juba voou inteira como se eu estivesse de cabeça para baixo – ou saltando de pára-quedas! Eu não tinha coragem de andar lá em cima sem que uma das mãos estivesse agarrada à terra firme. Como entendi os grandes navegadores..e o nome anterior do local de Cabo das Tormentas!.
Sempre de olho no relógio, desci para outra parada estratégica antes de voltar: almoço. E como não é todo o dia que a gente “vence” o Cabo da Boa Esperança, me sentei em uma lindo restaurante panorâmico com o sugestivo nome de Two Oceans. E não é que foi justo quando chegaram os petiscos de entrada que os babuínos resolveram deixar de me ignorar? Em um piscar de olhos um deles surgiu na minha mesa e me roubou os lindos pãezinhos…justo os pãezinhos? Não, isso não é justo! Se ao menos ele tivesse sentado na mesa comigo…mas não: surgiu, roubou e sumiu. Felizmente ganhei novos paezinhos e segui meu deleite gastronômico e panorâmico!
Após a sobremesa, hora de voltar para casa. Agora com uma imensa satisfação no lugar da ansiedade e vento nas costas, como se eu tivesse um motor de popa! Contudo, apesar desta condição favorável o cansaço estava pegando e para dar conta do caminho me lembro de ter colocado alguns “hits” locais, como Pata Pata, de Miriam Makeba e ter me distraído da fadiga do corpo fixando o olho no movimento do vento acariciando a vegetação. Foram praticamente 30 km sem pedalar e cheguei em “casa” cheia de histórias para contar…
…e no caminho ainda tomei uma decisão importante: recalcular a rota… Decidi ficar um dia a mais nos meus queridos em Simonstow para reorganizar os planos da cicloviagem. Foi um sábia decisão comemorada com vinho e entusiasmo pelos meus hospedeiros que ainda me presentearam com um filme que assitimos juntos e que ajudou a entender um pouco mais da história da história deles!