
Quando comecei a viajar, nos aeroportos sempre sabiam de onde eu vinha ou para onde voltaria: Rio Grande do Sul. Sim, minha estatura e traços germânicos, não negam… Contudo, quando comecei a ganhar o Brasil “me perdendo” pela natureza maravilhosa de Deus, a gaúcha se transformou em galega. Um gringa nacional em um país lindamente múltiplo. Não foram poucas as vezes que tentaram falar em outro idioma comigo. Fiquei contrariada, achei engraçado….mas foi percorrendo alguns trechos do majestoso Rio São Francisco de bike que de fato tatuei no coração meu novo codinome: galega!
Eu saí de Aracaju, a capital Sergipana, para me encontrar com ele em Neópolis. Foi tanta emoção que eu levei um tempo para acreditar que era verdade. Tempo que tirei montando a bike, terminando um trabalho, dando uma volta pela cidade, sempre flertando com o São Chico – meu amado e mítico rio. Perdendo o olhar nos barcos que iam e vinham… Ele brilhava tanto que parecia que ia explodir a qualquer momento. Luz demais para meus olhos que acabavam de se recuperar de uma conjuntivite. Amor misturado a medo. Ansiedade misturada a calma….tensão (tesão) que antecede o orgasmo….Tomei coragem e subi no barco para atravessá-lo. Foram tantos anos de um sonho tão intenso, que eu não me permiti “profaná-lo” em um repente. O capitão me convidou para subir na cabine, e melhor ainda: me deixou ficar no teto…assim, pude deslizar sobre o rio, escutando sua pulsação, acariciada pelo vento. Desci no Porto de Penedo, estado de Alagoas e dei uma primeira volta de bike acompanhado a orla e fazendo um reconhecimento inicial da cidade. Depois, tratei de arrumar pousada – pois só me encontraria com o grupo de pedal na manhã seguinte – e fui presenteada por um quarto que mais parecia um salão de baile, com janelas e sacada transbordando o todo (aqui) azul do São Francisco. Troquei de roupa, montei na minha companheira e fui em busca do local ideal para sacramentar o primeiro toque. Observei a paciência do senhor que pescava, a ilha que se formava em seu leito. Coração disparando. Decidi acalmá-lo antes de consumar o encontro de nossos corpos. Escolhi um local parecido com o meu quarto da Pousada Colonial: rio por todos os lados. Sentei no Forte da Rocheira, e comecei a rabiscar guardanapos dividindo com eles toda a emoção daquelas preliminares…
O play list estava a altura: me lembro de escutar Carinhoso. Não sei quanto tempo se passou. O tempo é a coisa mais relativa deste mundo e foram momentos docemente eternos. Escrevi, almocei, agradeci a Deus pela concretização de mais um sonho. Até que resolvi fechar a conta e deixar minha companheira assistindo de camarote meu affair. Desci uma ladeira de pedras irregulares, pulei uma pequena mureta, escorreguei um íngreme barranco e lá estava eu na margem. Ao lado do senhor que pela manhã eu tinha visto pescando. Ele seguia seu ofício. Fiquei alguns minutos em silêncio ao seu lado até que ele falou com a Galega aqui. Perguntei do Rio e ele respondeu com intensidade, sem titubear: “o São Francisco é uma mãe!!! Me dá tudo que preciso” .Esta declaração de amor era o sinal que faltava para eu avançar e ter a certeza de que eu estava na hora certa no lugar exato: minha pele tocou enfim suas águas…agora sou parte do Rio São Francisco. E ele é parte de mim. A cicloviagem seria um sucesso.
A jornada estava só começando mas já tinha valor imensurável. No dia seguinte ela começaria na prática, com o desafio de refazer os Caminhos do Imperador, da Foz aos Cânions, saindo do litoral, passando pelo agreste para chegar no sertão.
Com os pés mergulhados no Rio, sentada em uma pedra com as pontas do vestido esvoaçando emoções, ainda fiquei de papo com o pescador – Seu Roque – que me contou algumas de suas histórias. Provei um coquinho de dênde, que ele usava como isca, me deliciei com um pôr do sol maravilhoso e “peguei carona” com ele, já que o meu pé molhado resbalava no chinelo e nada de eu conseguir vencer o barranco…. Seu Roque não teve dúvida: me ofereceu seus ombros! Eu segurei firme e ele me içou até a mureta. Para mim esta cena cheia de poesia e graça, deveria ser hilariante para quem olhava de longe: a galega gigante rebocada pelo senhor franzino de pele negra e sábias barbas brancas.
Foi um dia que valeu uma vida. Na manhã seguinte, fortalecida por um vigoroso suco de jenipapo e um gostoso cuscuz encontrei o grupo. O dia era sugestivo: 20 de julho, dia do amigo.
Contando comigo éramos 9, todos fazendo a cicloviagem sem apoio, ou seja: levando toda a bagagem na bike, que no meu caso incluía também a própria mala bike e um notebook. Era um peso considerável, ossos do ofício para um gaúcha workaholic fascinada pelo nordeste…. Se carregar o peso extra era o preço a pagar para poder estar ali, desfrutando, paguei com gosto! Gosto salgadíssimo de suor, mas pago sem contestação.
O destino do primeiro dia era Propiá, SE, onde faríamos o pernoite, já que Porto Novo do Colégio Real em Alagoas era uma cidade bem menor e com menos opções de hospedagem.
A medida que fomos saíndo de Penedo e começamos a pegar – e nos perder – nas estradas de chão, meu lado galega foi eclodindo e ganhando terreno. Amei cada metro, sem moderação.
Quando já estávamos quase chegando ao nosso destino da primeira noite, vi em uma bifurcação o “Bar dos Amigos” e sugeri uma paradinha para hidratação com “pão líquido”, em homenagem ao grupo e a data. Foi lá que minha relação com o nordeste tornou-se ainda mais próxima: com o pretexto de tirar apenas uma foto, acabei montada no jegue, com estribo e tudo. Agora entendo na pele seu valor e sua importância para a região.
Para o pernoite, cruzamos o (agora) verde São Francisco e desfrutamos do cenário e hospitalidade de Propriá. Foi lindo dormir e acordar com o brilho do velho Chico…
O segundo dia foi de muitas subidas e descidas e eu perdi as contas de quantas vezes escutei aquele “solta o freio, Galega”, quando a turma arretada que estava pedalando comigo me estimulava a perder o medo nas ladeiras pedregosas e repletas de horizonte!
E foi no horário que o sol estava lascando, depois de pegarmos “carona” em uma canoa no São Francisco, que encontramos um aprazível boteco em uma das margens no pé de uma ladeira infinita. Era o povoado de Bode. Outra passagem inesquecível do meu encontro com o rio. Na sombra, escutando um axé das antigas, checando os e-mails eu observava a explicação da demora no que pedimos para comer: de um canto descia o moleque com um maço de coentro, de outro, alguns tomates e da “terceira via” vinham algumas cebolas. Até que enfim uma sardinha com vinagrete e farinha d’água. O prato mais simples e mais saboroso que já provei, mas que para sempre vai me transportar para aquele lugar, onde ainda descansamos um bom tempo e eu me deixei boiar e brilhar junto com o Rio, antes de seguir viagem.
Final de tarde e novo banho no São Francisco, agora com ares de balneário, na aprazível Traipú. Foi lá que vi os caminhões pipa sugando água do rio vorazmente e sem pudor, para ir vender sertão adentro.
Em Traipú ficamos hospedados na casa dos pais de um dos companheiros de pedal e tivemos tratamento de realeza: jantar típico com comidas regionais, histórias, música…aquela acolhida de coração aberto que o nordestino faz tão bem!
No dia seguinte, mais sol de rachar – viva o sertão! – e como estava difícil pedalar com este clima, decidimos curtir a água e avançar o pedal noite adentro para chegar na cidade do próximo pernoite. Foi então na beira do rio que me emocionei com a constatação de um Brasil tão lindo e diverso que escapa à vivência das capitais: as crianças foram chegando uniformizadas e entraram em um barco lindamente pintado de amarelo com os dizeres “escolar”. Salva-vidas colocados e lá se foram eles São Chico adiante, depois da jornada cumprida. E nós, bem descansados e frescos, voltamos para as bicicletas. Por de sol no sertão, os últimos raios de sol refletidos na água, beleza pura. Uma oração viva. Cruzamos com um rebanho de cabras e seus sininhos animadamente tilintando e logo mais a noite avançou. Meus companheiros de pedal anunciaram que tínhamos pela frente uma das mais duras ladeiras do caminho, mas a boa notícia é que vencida esta etapa, chegaríamos a Pão de Açúcar, local do pernoite. A subida era realmente de lascar, mas uma doce surpresa suavizou ela para mim: eu estava com luzes coloridas na roda dianteira e lá pelas tantas ouvi a voz de uma criança chamando: “venham ver as luzinhas, uma árvore de Natal”. Sim. Eu era a árvore de Natal! E quando aquele bando de crianças foi saindo das casas de pau à pique para olhar com encantamento minha bike, meu coração voou e as pernas esqueceram a força que estavam fazendo. Flutuei então ladeira acima naqueles instantes de poesia…e chegando no topo, foi só deslizar até a cidade….desta vez a Galega soltou os freios e foi! Apesar do nome doce, Pão de Açucar foi um desafio. Isto porque a cidade estava recebendo uma caravana de políticos e não encontrávamos sequer um lugar para dormir. O cansaço batendo forte, quando enfim encontramos um local. Exato: “um local”. A princípio seria um quarto para sete pessoas (2 ciclistas resolveram encarar o sol e chegaram antes dos políticos, mas esqueceram de garantir a nossa vaga!) mas felizmente apareceu mais um quarto e como éramos apenas duas mulheres no grupo, decretamos que nós ficaríamos no quarto com mais um rapaz, escolhido por nós. Claro que escolhemos o menor e menos roncador. O quarto era bizzaro: um banheiro separado por um pedaço de pano, a chave uma bola de bilhar, a cama de casal miúda para três. Mas, enfim, só agradecer pois descansamos…ou morremos? Depois de um dia extenuante de pedal, não sobra muita energia…foi difícil até nos mantermos acordados para esperar a pizza da janta! Reta final e o dia amanheceu nublado. E como toda a moeda tem dois lados, a mesma caravana política que “roubou” nossa hospedagem também melhorou a estrada de chão por onde íamos passar. E fomos assim, vencendo subidas e descidas, adentrando porteiras pelo agreste rumo ao sertão, onde recebemos um presente dos céus: chuva! Chuva miúda e tão aguardada pelos moradores locais. Ver aquela paisagem tão árida recebendo umidade foi lindo de viver. Mais adiante, ainda cruzei com um sertanejo e seu bravo cavalo, com um peitoral de couro com o bordado em letras vermelhas: sucesso. Mais adiante outra vivência que vai ficar para sempre no coração: pedimos um pouco de água para beber em uma casa e a senhora veio toda solícita e começamos a conversar.. de repente, no meio da plantação de palmas, surge uma casal de pavões fazendo um show para nós. Comentei com ela que de tanto ver palmas já estava com água na boca, sonhando com um suco ou uma salada… A partir deste meu comentário ela contou que era agente de saúde comunitária e que orientava as pessoas a consumirem aquele alimento, mas havia muita resistência por considerarem que era comida de gado. Depois, ela perguntou se eu não me importava de repetir meu depoimento, que ela chamaria suas filhas, disse que vindo de uma galega, elas iam valorizar….ela contou que quando fala da riqueza nutricional da palma, o povo dali se sente ofendido, como se fosse “rebaixado” a gado…
Depois desta prosa boa, que confirmou que todo o sofrimento de quem vive perto do rio e mesmo assim vê sua plantação e animais definharem por falta d´água não é coisa de novela, seguimos a pedalada. Os pais de uma amiga de um amigo e assim por diante iam nos receber no próximo povoado para um suco e depois tínhamos encomendado uma boa peixada. E qual não foi a nossa surpresa – diante dos frágeis laços de conhecimento dos anfitriões – que fomos recebidos novamente como realeza! E o casal ainda se queixou que os “moleques” não avisaram quando estávamos descendo a ladeira pois queriam ter nos recebido com fogos de artifício. E o suco se prolongou, virou almoço, suspendemos a peixada e teve até cantoria. Depois de tamanha fartura, não me arrsiquei a seguir pedalando, pois os próximos quilômetros até Piranhas eram duríssimos e segundo os que conheciam o trajeto, sem grandes paisangens e novidades, e ainda com perigoso trânsito de veículos. Eu e mais 3 ciclistasdesertamos então e fomos com nossas bikes na canoa, São Chico acima. Mais momentos mágicos de contemplação do Rio, seus redemoinhos, suas margens, sua gente…O pernoite foi em Piranhas – outra cidadezinha hospitaleira no lado alagoano – onde ainda dançamos quadrilha e curtimos toda nordestinidade do local.No dia seguinte seguimos os trilhos do antigo trem, conhecemos a Hidroelétrica do Xingó e seguimos rumo a Olho D’agua do Casado. Por entre mandacarus e outros cactos nada amistosos fomos nós esgueirando por trilhas que por vezes nos faziam hesitar…mas o desafio do caminho só deu mais gosto à aventura. E que aventura! Em um trecho, tivemos que nos equilibrar pelos trilhos do trem levando a bike nas costas. Em outro, duvidando do estado de conservação dos dormentes, fizemos toda uma operação de atravessar um despenhadeiro puxando bikes e colegas por entre pedras e espinhos. Missão cumprida! O primeiro dia sem bagagem, foi bem mais fácil! E mesmo depois de toda a festa da noite anterior a Galega aqui finalmente soltou o freio e voou para o Restaurante do Castanho, nas margens do São Chico onde terminaria oficialmente nossa cicloviagem. Dali, o grupo voltaria para Maceió e a Galega seguiria só…Me lembro a sensação distinta de ver a van se afastando com meus amigos e suas fiéis bicicletas e eu e a Branca de Neve paradinhas no Posto, no meio do sertão tomando fôlego para uma descida eletrizante até Piranhas. Foi um misto de medo e coragem. Descemos! A adrenalina era tanta que ainda teve mais quadrilha e me animei para uma exploração turística no dia seguinte aos cânions do São Francisco. Foi estranho olhar para aquela grandiosidade toda e desbravá-la sozinha. Mas fui. Com todo meu entusiasmo e ‘galeguice’. Com peito aberto e transbordando. Madruguei e enquanto fazia hora para tomar o café da manhã ainda explorei os morros da cidade na companhia de uma simpatiCÃO que apelidei de Chiquinho. Alimentada, subi na bike e fui ladeando o Rio e toda sua majestade. Mal cruzei a margem – para São Francisco do Canindé e já assuntei com o artesão. Conversa vai, conversa vem…foi quando falei dos cavalos,que veio a conexão e parecíamos velhos amigos. Excelência (era seu nome) engatou na prosa. Deu dicas para o pedal do dia seguinte – dia de voltar para Aracaju e voar para casa – e até socializou um amiga para me acolher no caminho. Turistei de barco pelos cânions me sentindo um diva de Titanic… ao contrário do filme, não teve nenhum desastre (nem um Di Caprio :() mas eu até desci para pegar um caiaque e explorar ainda mais este cantinho paradisíaco de nosso Brasil. Enfim, chegou a hora de voltar para a friaca do sul. Madruguei, coloquei as tralhas na bike e decidi que ainda poderia pedalar uma parte do caminho até Aracaju. Passei no Excelência e ele combinou que sua amiga, Magda, me receberia alguns quilômetros adiante com banho e almoço e me auxiliaria a pegar o ônibus para a capital. Dito e feito. Mais do que perfeito: muitas subidas e suor depois, fui acolhida com um almoço com comidas regionais maravilhosas. Magda era dona de um restaurante muito acolhedor no caminha da Gruta do Angico e como eu estava indecisa sobre o que pedir, ela resolveu preparar para mim um pouco de tudo! Me emocionei. E resolvi até deixar a cestinha da minha bike lá, de presente. Não foi uma relação comercial…foi algo que existe muito no nordeste: aquela acolhida de coração e alma! Ela preparou um verdadeiro banquete, me fez descansar na rede, emprestou linha e agulha para costurar o mala bike que tinha arrebentado, mandou vir uma cocada especial…e ainda teve a cereja do bolo, ou melhor: a goiaba! Quando chegou perto da hora da condução passar, Magda foi esperar comigo na beira da faixa. Estávamos lá, esperando e percebi uma plantação linda, cheia de árvores baixinhas e perguntei o que era. “Goiabas” – respondeu ela prontamente sumindo em um piscar de olhos. E aquela mulher não voltava nunca e eu já nervosa de perder a condução…Uns 5 minutos depois ela retorna, com uma goiaba gigante – a maior que já tinha visto na vida! – e disse que era presente, que estava meio verde, mas ia amadurecer. A condução chegou! Me despedi, coloquei a bike não sei como naquele pequeno microônibus e comecei a aventura rumo a capital. Com a goiaba na mão, linda, maravilhosa (a goiaba, claro). Felizmente, não deu tempo de dizer para a Magda que eu não gostava de goiabas. O caminho até Aracaju, foi uma viagem à parte: jegues cruzando a faixa no horário marcado, paradas para vendedores ambulantes oferecerem milho cozido e um trânsito caótico. Até comprei um milho pois disseram que a viagem ia atrasar. Foram mais de 3 horas de um sacolejo danado com a goiaba na mão e cheguei na rodoviária. De lá, Uber para o Aeroporto. E a goiaba na mão, como uma jóia. Troca de avião em SP e a goiaba seguia firme, forte e intocável. Acho que no fundo, eu torcia para um acidente, para que eu pudesse deixá-la para trás…por outro lado ficava pensando em toda a acolhida e nos cinco minutos em que aquela mulher que nem me conhecia devia ter se esmerado para ofertar a mais linda goiaba do pomar para a galega sorridente. Não, a goiaba não podia ficar para trás. Cheguei em Porto Alegre e a goiaba ganhou protagonismo na minha cozinha. Ela amadureceu lindamente e eu a degustei lembrando toda a linda renda feita pela galega aqui, montada na bike, em um namoro lindo com o Majestoso Rio São Francisco.
