
Eles me mostraram muito mais sobre mim e meus poderes do que eu poderia imaginar…
Aqui em casa, sempre fomos quatro com nome próprio: eu, minhas cadelas Lilica e Love, e o gato Zizu. Quando eu comprei a casa foi para isso: para ter bichos e plantar.
Mas como na vida a gente não domina os planos que faz, veio a bike e me fez mudar de vida. Me fez correr o mundo, ou melhor: pedalar! E o meu trio se manteve sempre do meu lado: nas idas, para adoçar despedidas, nas voltas, para eu ter certeza que tinha mesmo um lar. Até que, do mesmo modo avassalador com que a bike me transformou, chegou a pandemia para lapidar ainda mais a minha transformação. Fiquei mais em casa e com isso descobri o verdadeiro amor…A Lilica me ensinou a viver o amor com plenitude, a não ter vergonha de manter e viver a alegria como uma crianca…Me ensinou a celebrar cada instante de vida como se não houvesse amanhã! Mas, nos primeiros meses da pandemia, de supetão, a Lilica virou estrelinha. Ela se foi com um ataque fulminante do coração – eu sempre acho que foi emoção demais para ela me ter tão perto por tanto tempo!
Com a partida dela, nós – os sobreviventes – passamos a perceber nossa finitude e exercitar o carinho como nunca. A Love, que até então vinha bem, ficou um bom tempo numa tristeza profunda, que só se curou com muito toque. Sim, para ela não bastava ficar perto, ela queria estar em contato, pele com pelo, e parece que assim enfim relaxava. Notei que seus passos se tornaram mais lentos, as patinhas menos ágeis. Aquela cadela serelepe que pulava no parapeito da janela por entre as grades e derrubava tudo e todos para subir as escadas e pular na minha cama e até mesmo na rede, começou a necessitar muita determinação para coordenar os passos e subir um degrau de cada vez, com toda a dificuldade. E num piscar de olhos, a escada tornou-se um obstáculo intransponível e a glória dela era subir em um colchão no chão…Se ela fosse humana, com certeza estaria de andador. Quando ela latia, o corpo inteiro ia junto. Ela dá suas voltinhas no jardim, mas logo já quer deitar. Eu olho para ela e vejo uma pessoinha idosa. Talvez os idosos que eu não tive: meus pais, que morreram muito cedo. Eu olho cada ruguinha dela, a bundinha caída, a concentração para não errar o passo e me encho de amor que transborda em suspiros… Quero servir, quero apoiar, quero estar junto com este serzinho que tantas alegrias me deu – e continua me dando – sem nunca pedir nada em troca. Com certeza a Love não estava junto nos melhores momentos da minha vida, mas nos piores, ela não faltou a nenhum, sem poupar lambidas e olhares que pareciam dizer: “Vai passar, estamos juntas!”Há pouco mais de 16 anos atrás, quando amigos queridos me disseram que uma cadela de rua que cuidavam tinha dado cria, logo me interessei e emprestei a máquina fotográfica. Olhei a foto e não hesitei: quero a branca pintadinha e ela vai se chamar Love. Talvez naquele instante, como em um passe de mágica, eu tenha antevisto sua missão aqui na terra. Sim. Ela foi a escolhida para me mostrar o amor. Um amor puro, intenso, sábio…um amor animal! Sua primeira lição foi: eu te amo, mas o amor começa em mim e não vou abrir mão da minha personalidade….sim, ela era exótica, agitada, adorava um colo…mas era no tempo dela…e era bom demais quando nossos tempos coincidiam…Outra grande lição foi a de que palavras não são necessárias para consolar quem se ama…basta estar junto. E nos meus tantos choros velados, fui sempre flagrada pela Love, que chegava e se aninhava, chegava a “cair” de lado ao deitar para ter a certeza que estaria bem juntinho de mim…e ficava ali horas, talvez sentindo meus batimentos, talvez tentando absover minhas angústias! A Love também me ensinou que os “meus” sonhos não são os “nossos” sonhos! Quando ela (e eu!) ficamos arrasadas com a partida da Lilica comecei a projetar um carrinho que seria acoplado a bike, para que a Love pudesse me acompanhar nas cicloviagens. Fiz desenhos e mais desenhos, pesquisei como uma louca… Confesso que todos estes estudos e projeções me ajudaram a desfocar da dor e a olhar no horizonte. Mas, lá pelas tantas, quando eu já estava de volta a “superfície”, me dei conta que a questão não era levar a Love junto, mas pensar se ela curtiria a viagem. E aí veio esta outra linda e importante lição: amar não é impor sonhos, mas construí-los em conjunto! Com certeza, as experientes costelinhas da Love não passariam incólumes aos sacolejos da estrada…que miopia e egoísmo meu! Abandonei a ilusão e seguimos em frente, aprumadas pelo amor para a próxima lição: conviver com as limitações com dignidade…Então, se a Love já não conseguia mais subir as escadas, por que eu não poderia mudar meu quarto de local? E assim, eu fui cedendo aos poucos, para que continuássemos juntas e próximas…acho que afinal o amor – um amor animal! – tem que ser assim: menos egoísmo e mais empatia. Menos regras e mais escuta. Menos imposições e mais concessões. A Love me ensinou a encontrar o prazer sincero de colocar-me a serviço. Me ensinou a aceitar os fatos com dedicação e entrega. Nossa Love, fostes uma grande professora! Conseguistes me fazer ver a vida – e a morte! – com muito mais poesia!Aos poucos fui aceitando tua finitude e me sentindo honrada pelos momentos compartilhados. Me senti puro amor ao poder te levar nos meus braços, para pegar sol no jardim e preparar um playlist para acalmar teus (e os meus!) medos… …e enquanto o tempo da Love entre nós se esgotava, por outro lado o mesmo tempo demostrava que o amor vence todas dificuldades: o Zizu, que chegou a ter a indicação de amputação, começava a dar as primeiras voltas em 4 patas por nosso jardim encantado. Aliás, o Zizu é outro mestre phd em amor! Ele demonstrou que o verdadeiro amor não tem preconceitos e se constrói com entrega plena, dedicação diária.Nos 9 meses – praticamente uma gestação – que separam o “a pata está quebrada” de “ele está de alta” o Zizu ficou mais humano e eu ( ainda bem! ) fiquei mais animal ao esquecer pudores e reestabelecer prioridades…Este pequenino confiou em mim como eu jamais teria a coragem de confiar em alguém…chegava a abrir a boca para tomar a medicação. Enfrentou cirurgia e procedimentos sem temor. Ele demonstrava orgulho e muito carinho como forma de reconhecimento a sua humana que balançava mas seguia, mesmo diante dos piores prognósticos! Ele demonstrou com seus atos como deveria ser, como é! Um amor animal é assim: confia, entrega, agradece, reconhece…A Love partiu no início de novembro deixando sua última, grande e desafiadora lição: amar é deixar ir…naturalmente! Amar é desapegar da matéria e ter a calma de que o verdadeiro amor está na alma…O Zizu segue – diariamente – me fazendo exercitar o amor e me lapidando com carinho…me ensinando a curtir cheiros do jardim e a me conectar com a natureza para me manter plena e energizada…Ah…que amor animal, lindo de viver! Acho que nunca estarei pronta – mas como me ensinaram Lilica, Love e Zizu – tudo que quero é morrer praticando!